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Crítica | A face mais incômoda da sobrevivência: Stella: Vítima e Culpada

Em Stella: Vítima e Culpada, acompanhamos a trajetória complexa e perturbadora de uma mulher marcada por escolhas controversas. Baseado na vida real de Stella Goldschlag, filme mergulha na história de alguém que, durante o regime nazista, colaborou com as autoridades ao delatar judeus, um ato que a tornou símbolo de traição. Ao longo de quatro décadas, a narrativa entrelaça sua vida pessoal com os acontecimentos históricos da Alemanha, revelando não apenas uma personagem ambígua, mas também um espelho das feridas morais e políticas de um país em reconstrução.

Uma mulher comum em tempos extremos: o desconforto necessário de Stella: Vítima e Culpada

Interpretada com intensidade e sutileza por Paula Beer, Stella Goldschlag emerge das sombras da História como um dos retratos mais inquietantes do Holocausto, não por sua monstruosidade explícita, mas por sua humanidade contraditória. Traidora para uns, sobrevivente para outros, Stella não cabe nas classificações fáceis. E é justamente essa ambiguidade que o diretor Kilian Riedhof abraça com coragem.

A narrativa evita julgamentos simplistas ao revisitar a trajetória de uma jovem judia que, sob tortura e ameaça de morte, escolheu colaborar com o regime nazista, entregando outros judeus à Gestapo. A crueldade de seus atos é inegável, mas o filme nos força a encarar a complexidade moral da sobrevivência em um mundo dilacerado. Stella é egoísta, vaidosa, inteligente, determinada, e talvez por isso mesmo tão real.

O que torna Stella especialmente provocador é sua atualidade. Apesar de ambientado na Segunda Guerra, o filme dialoga com a nossa era de narcisismo exacerbado, onde a autopreservação muitas vezes supera qualquer senso coletivo. Riedhof sugere que o impulso de Stella em priorizar seus desejos, sua imagem e sua vida acima de tudo não é apenas fruto do terror nazista, mas um traço que continua ecoando nas dinâmicas sociais de hoje. Vivemos tempos em que o “eu” reina absoluto, e nesse espelho, a figura de Stella nos encara de volta com desconforto.

Outro ponto que amplifica a força do filme é a sua recusa em transformar a protagonista em uma caricatura. Riedhof e Beer constroem uma mulher de aparência comum, que poderia ser sua vizinha ou colega de escola. E é justamente essa trivialidade que amplifica o horror de suas escolhas. Porque ao final, Stella: Vítima e Culpada não quer apenas narrar um caso isolado do passado, quer que nos perguntemos: o que eu teria feito no lugar dela?

O que mais impacta na narrativa é a lenta e dolorosa corrosão interior de Stella, não apenas pelas circunstâncias extremas que enfrenta, mas pelo modo como o trauma vai desmontando, peça por peça, sua integridade emocional. A transformação é inquietante: diante da tortura e da ameaça constante, ela vai se distanciando de qualquer senso de moralidade, como se cada concessão garantisse apenas mais um fôlego. A perda de valores não ocorre de forma repentina, mas sim como um processo silencioso e devastador, meticulosamente retratado no filme.

O resultado é um drama histórico tenso, cru e que vai muito além de recontar fatos: ele cutuca feridas ainda abertas, tanto individuais quanto coletivas. E nos lembra que, em tempos extremos, a linha entre vítima e culpada pode ser mais tênue e mais incômoda do que gostaríamos de admitir.

Sobre a produção do filme, temos uma combinação de uma trilha sonora contida, cenários opressivos e uma fotografia marcada por enquadramentos sufocantes constrói uma atmosfera de inquietação permanente, como se o filme respirasse no limite.

Stella: Vítima e Culpada chegou aos cinemas brasileiros no dia 19 de junho, trazendo consigo uma das histórias mais controversas e provocativas da temporada.

NOTA | 4/5

Título original: Stella. Ein Leben.
Dirigido por: Kilian Riedhof
País/Ano: Alemanha – Áustria – Suíça – Reino Unido | 2023
Duração: 121 minutos
Gênero: drama , guerra
Elenco: Paula Beer , Jannis Niewöhner , Katja Riemann , Joel Basman , Damian Hardung , Lukas Miko, Bekim Latifi , Maeve Metelka , Nadja Sabersky , Julia Anna Grob , Alexander Martschewski , Vincent Koch , Konstantin Gries , Joshua Seelenbinder , Max Schimmelpfennig , Mortiz Führmann , Katja Bürkle , Max Wagner , Heike Jonca , Steffen Münster , Markus Schleinzer , Gerdy Zint , Mathis Reinhardt , Nikolai Will , Ulrich Schmissat , Hendrik Arnst , Roland Silbernagl , Christoph Luser , Max Krause , Rony Herman , Ruth Marie Kröger
Roteiro: Marc Blöbaum , Jan Braren , Kilian Riedhof
Fotografia: Benedict Neuenfels
Produção: Dor Film , Letterbox Filmproduktion , SevenPictures Film , Real Film Berlin , Amalia Film

Distribuição: Mares Filmes

Trailer

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