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Crítica | Angel’s Egg: o silêncio que grita

Há filmes que se apresentam como enigmas desde o primeiro contato. Angel’s Egg é um deles, não por tentar confundir, mas por existir numa frequência própria, quase subterrânea. Encontrá-lo pela primeira vez é como descobrir um relicário esquecido, algo que você não tinha certeza se deveria abrir. E, quando abre, não encontra respostas: encontra ecos.

Desde minha primeira sessão, o filme de Mamoru Oshii se comportou menos como narrativa e mais como um sonho resistente, desses que permanecem colados à pele muito depois de acordar. Adormecedor, denso e hipnótico, ele parecia pedir distância para, depois, retornar, insinuando-se até que eu me sentisse obrigado a revisitá-lo.

A história, reduzida ao essencial, acompanha uma garota e um rapaz atravessando um mundo devastado. Nada é explicado, nada é facilitado. Oshii prefere construir significados por suspensão, por ausência e acima de tudo por símbolos religiosos que pairam como ruínas: o ovo, os peixes, a cruz, a arca. O diretor descreve o filme como uma reflexão sobre fé, mas “reflexão” talvez seja modesto; o que encontramos aqui é uma crise espiritual transformada em paisagem.

Entre revelar e ocultar

Quem chega esperando dinamismo encontrará resistência. Angel’s Egg dilata o tempo. Os cenários são contemplados como se carregassem memórias. Os diálogos são tão raros quanto preciosos. Cada som ou a falta dele, reforça o isolamento absoluto dos personagens.

Esse movimento lento não é preguiça; é método. Aos poucos, as imagens deixam de parecer apenas belas e começam a sugerir tensões, choques internos, medos não ditos. O menino carrega a dúvida como arma. A menina carrega o ovo como promessa. E, quando essas duas forças se chocam, o filme deixa de ser apenas um estudo visual para se tornar uma espécie de parábola fragmentada sobre acreditar e deixar de acreditar.

O toque de Oshii

Oshii sempre foi um cineasta de ciência e espírito, e aqui ele unifica os dois domínios. A estética pós-apocalíptica não está a serviço de explicações, mas de atmosfera, como um altar onde as perguntas ecoam mais alto do que as respostas. Isso faz com que Angel’s Egg dialogue com filmes religiosos sem parecer um deles, e com ficção científica sem se encaixar exatamente no gênero.

No fundo, o diretor cria um mundo onde o vazio conversa com quem estiver disposto a escutá-lo. E é esse vazio que torna o filme tão singular: ele lembra que animação não precisa ser transparente para ser poderosa, nem seguir fórmulas narrativas para ser profunda.

Quando a tela escureceu, fiquei paralisado por alguns segundos, encarando o meu próprio reflexo, como se o filme tivesse me devolvido mais perguntas do que eu estava preparado para receber. Nas horas seguintes e nos dias voltei a cenas, a imagens, a ideias que haviam ficado suspensas na memória. Angel’s Egg não exige compreensão imediata. Ele exige disposição para sentir primeiro e interpretar depois.

Angel’s Egg é uma obra-prima silenciosa, mas não para todos. É lento, hermético e deliberadamente abstrato, qualidades que podem afastar ou fascinar, dependendo da sensibilidade do espectador. Para quem se entrega ao seu ritmo, porém, o filme oferece uma experiência rara: uma meditação visual sobre fé, perda e significado, construída com coragem estética e uma honestidade emocional que poucos diretores ousam tentar. É um filme que não se assiste; se atravessa. E ele atravessa você de volta.

NOTA:  4 | de 5

Distribuído pela Sato Company, o longa estreia nos cinemas em 20 de novembro.

FICHA TÉCNICA
Direção e Roteiro: 
Mamoru Oshii
Produtor: Tomohiko Ishii
Design de Personagem e Direção de arte: Yoshitaka Amano
Edição: Han Eon-jae
Trilha sonora: Yoshihiro Kanno
Distribuição: SATO COMPANY
Gênero: Fantasia, Experimental
Duração: 71 minutos
Idioma: Japonês (Legendado)
País: Japão, 1985 (Remasterização, 2025)

Criador de conteúdo do ON Pop Life, é apaixonado por cinema, cultura geek e pop japonesa. Atua há mais de 10 anos na cobertura de eventos, shows e já organizou eventos de anime.