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Crítica | Napoli–New York: uma travessia entre ruínas e sonhos

Inspirado em um argumento de Federico Fellini e Tullio Pinelli, o novo filme de Gabriele Salvatores, Napoli–New York, é uma delicada combinação entre fábula, realismo e memória cinematográfica. O diretor, vencedor do Oscar por Mediterrâneo (1991), retorna aqui a um terreno que domina com naturalidade: o das viagens transformadoras, em que personagens deslocados buscam um sentido de pertencimento. Mas, diferentemente de suas obras anteriores, Salvatores olha para o passado do próprio cinema italiano, reconectando-se com o espírito do pós-guerra e com a pureza narrativa do neorrealismo.

O longa se passa em 1949, quando a Itália ainda tenta se reerguer das ruínas deixadas pela Segunda Guerra Mundial. Em Nápoles, uma bomba não detonada explode e destrói um prédio inteiro, deixando órfãos dois sobreviventes: Celestina (Dea Lanzaro) e Carmine (Antonio Guerra). A cidade em que vivem é um retrato da miséria e da desilusão, um espaço de fome, ruínas e contrabandistas. Ainda assim, há algo de luminoso na forma como Salvatores filma esse cenário: a lente de Diego Indraccolo confere às ruínas uma textura quase mágica, onde o olhar infantil enxerga esperança em meio ao caos.

Sem família nem rumo, Celestina e Carmine encontram um improvável aliado: George (Omar Benson Miller), o cozinheiro de um navio americano chamado Victory, que se prepara para zarpar rumo a Nova York. É ele quem lhes oferece a chance de embarcar clandestinamente, iniciando uma jornada que combina aventura, melancolia e fantasia. Durante a travessia, a dupla é perseguida pelo comissário italiano Garofalo (Pierfrancesco Favino), figura cômica e trágica ao mesmo tempo, que representa a rigidez de um mundo adulto incapaz de compreender a pureza do gesto infantil.

A viagem de navio é um microcosmo do mundo: de um lado, a elite americana jantando ao som de Smile, de Jimmy Durante; do outro, os imigrantes confinados e invisíveis, sonhando com uma terra prometida que talvez não exista. Salvatores, com sua habitual ironia, transforma o navio em uma espécie de palco moral, onde contrastes de classe e raça são expostos com sensibilidade. A cena em que as crianças contemplam o oceano enquanto ouvem um cantor de blues na proa é uma das mais belas do filme, um instante em que a inocência encontra a tragédia, e a esperança parece possível.

Ao chegarem à América, Celestina e Carmine desembarcam na Ilha Ellis, símbolo de chegada e exclusão, e seguem para o Bronx em busca de Agnese (Anna Lucia Pierro), irmã mais velha da menina. O que encontram, no entanto, é um pesadelo: Agnese está presa no corredor da morte por ter matado o homem que a seduziu e abandonou. É nesse ponto que o filme entrelaça a narrativa das crianças com uma crítica mais ampla, a ilusão do sonho americano, a desigualdade racial e o papel das mulheres italianas na perseguição. A mobilização feminina para libertar Agnese confere à trama uma dimensão social inesperada, que ressoa com as lutas contemporâneas por justiça e dignidade.

Salvatores adota o tom de um conto de fadas neorrealista, expressão que parece contraditória, mas que define bem o equilíbrio entre o real e o imaginado. A câmera se mantém à altura das crianças, restringindo o campo de visão ao que elas veem e compreendem. O espectador, assim, compartilha dessa perspectiva parcial, onde o medo e o encantamento coexistem. Os efeitos visuais discretos, usados para recriar uma Nova York estilizada e quase surreal, reforçam a ideia de que essa América é uma fantasia coletiva, moldada por cartazes, músicas e promessas vazias. Como observou Fellini em sua própria obra, trata-se menos de um lugar e mais de um estado de espírito.

A trilha sonora, que vai de Roberto De Simone e Franco Corelli em Nápoles a The Ronettes, Benny Goodman, Bruce Springsteen e Tom Waits nos Estados Unidos, funciona como um eixo de contraste cultural. A música americana embala as ilusões, enquanto as canções italianas guardam o lamento do exílio. Há uma cena especialmente tocante em que Celestina entra em um cinema e assiste a Paisà, de Rossellini: ela reconhece sua cidade nas imagens e é expulsa da sessão ao gritar isso em voz alta. É um momento metacinematográfico, o cinema refletindo o próprio cinema, que sintetiza o gesto de Salvatores: olhar o passado para compreender como o mito da modernidade se construiu sobre o esquecimento e a exclusão.

O diretor demonstra domínio técnico e uma sensibilidade rara ao lidar com os temas de infância, perda e deslocamento. As atuações infantis são espontâneas e comoventes, especialmente a de Dea Lanzaro, cuja Celestina carrega a doçura e a força de quem já viu o pior e ainda acredita no melhor. Antonio Guerra como Carmine é o contrapeso emocional que dá forma ao vínculo entre as duas crianças. Sua interpretação é marcada por uma naturalidade comovente, um equilíbrio entre a inocência e a dureza que a sobrevivência impõe. Favino, por sua vez, dá humanidade a um personagem que poderia ser apenas caricatural, e Omar Benson Miller adiciona calor e ternura em uma história marcada por fronteiras.

Napoli–New York é um filme de contrastes: realista e mágico, dolorido e esperançoso, europeu e americano. Salvatores honra Fellini e Pinelli ao recuperar a simplicidade emocional que deu origem ao cinema italiano moderno, mas também imprime sua própria marca, mais acessível, mais afetuosa. Em tempos de muros e fronteiras reerguidas, sua obra ressoa como um lembrete de que a imaginação é, talvez, a forma mais poderosa de resistência. É um daqueles filmes que terminam e permanecem: não pela história que contam, mas pelo olhar que devolvem ao espectador. o de uma criança que ainda acredita que atravessar o mar vale a pena.

NOTA:  5 | de 5

Napoli-New York
Direção: Gabriele Salvatores
Elenco: Pierfrancesco Favino, Dea Lanzaro, Antonio Guerra, Anna Ammirati, Antonio Catania
País: Itália
Ano: 2024
Duração: 124 min
Gênero: Drama

Apresentado no Festival de Cinema Italiano, Napoli–New York reafirma o talento de Gabriele Salvatores em transformar a memória e a esperança em puro cinema

Criador de conteúdo do ON Pop Life, é apaixonado por cinema, cultura geek e pop japonesa. Atua há mais de 10 anos na cobertura de eventos, shows e já organizou eventos de anime.